quarta-feira, 6 de abril de 2011

O tabuleiro de xadrez e as opções do artista plástico. Por Oscar D’Ambrosio

O tabuleiro de xadrez é o mundo, as peças são os fenômenos do universo, as regras do jogo são o que chamamos as leis da natureza. “Esta frase de Thomas Huxley, em Uma educação liberal, é suficiente para verificar os múltiplos elos que existem entre o jogo de xadrez e as inúmeras conexões que norteiam a vida profissional daquele que resolve ser artista plástico e realizar um curso universitário.
Criado aproximadamente em 500 d.C. na Índia, o xadrez simboliza, segundo Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolos, a luta entre asura (Titãs) e deva (os deuses). Trata-se de um encontro entre o caótico universo regido pela coruja e o princípio cosmológico que encontra sua expressão na beleza sedutora do faisão.
O tabuleiro comporta 64 casas, número da realização da unidade cósmica (Vastupurushamandala). Em suma, pode-se dizer que o espaço em que acontece a luta entre as forças do bem e do mal constitui o campo de ação das potências cósmicas. A batalha ocorre em um quadrilátero, representação da limitação da terra em seus quatro orientes.
Enfim, torna-se evidente que o jogo de xadrez sintetiza a luta das tendências no íntimo do homem. Basta verificar que a origem etimológica da palavra xadrez nos conduz ao significado “inteligência da madeira”. Na tradição da Índia, o rei sábio deveria ocupar um terço de seu dia jogando xadrez, moldando o espírito para os desafios da vida cotidiana.
Conhecer as regras do jogo e praticá-las com consciência constitui uma tomada de controle sobre si mesmo, sobre a divisão interior do psiquismo humano, cenário de um combate perene entre as conseqüências do fazer e o medo de realizar os variados desejos de nossa mente.
A alternância entre as casas brancas e pretas mostra a constante mobilidade humana entre os pólos do branco e do negro; da contenção e da exaltação; e do controle e do entusiasmo. Estas múltiplas relações do homem com seu próprio eu encontram no jogo de xadrez uma diversidade de símbolos que mostram as possibilidades profissionais dos artistas plásticos.
Cada jogador tem oito peões à disposição. São as peças mais numerosas do tabuleiro, mas as menos valorizadas pelos leigos no jogo. Embora pareçam desimportantes, muitas vitórias são obtidas através dos movimentos precisos destas peças que simbolizam os milhares de professores anônimos de arte que trabalham na rede pública ou na particular e que são extremamente criativos, pragmáticos e voluntariosos. Não alcançam o estrelato da mídia ou da universidade e recebem baixos salários, mas são os responsáveis por ensinar o princípio das artes para a maior parte da população do País.
Passemos as torres. Movem-se na horizontal ou na vertical e são capazes de percorrer longas distâncias se não encontrarem outras peças pela frente. Indicam o profissional com objetivos bem determinados. Escolhe o que deseja e se instrumentaliza para atingir seu ideal. Porém, se não encontrar o esperado espaço no mercado de trabalho, corre o risco de ficar imóvel perante a falta de perspectiva.
Os cavalos são bem mais dúcteis. Essenciais nos movimentos difíceis do jogo, tem a habilidade de mover-se em qualquer lugar do tabuleiro, acompanhando os modismos e aproveitando todas as oportunidades. Dificilmente se abatem, pois sabem de sua
potencialidade. Não culpam o sistema, mas suas próprias deficiências para enfrentar o mercado.
Os bispos mexem-se pelas diagonais. Procuram participar em todos os níveis e logo ganham certa ascendência sobre os colegas. Exatamente pela tendência de aparecerem muito, são geralmente marginalizados. Permanecem como colaboradores de projetos. São sempre procurados para ajudar, mas raramente conseguem ocupar espaço no primeiro escalão. Seus ganhos são o resultado de numerosas procedências, demonstrando que seu prestígio é maior do que sua força real.
Temos ainda a dama. É uma empreendedora, abrindo caminhos mesmo nas circunstâncias mais adversas. Extremamente bem preparada, revela alta competitividade, grande agilidade e devota sua vida e profissão, sacrificando muitas vezes a família e relações de amizade. Possui enorme facilidade para mudar o próprio caminho e procura uma atualização constante, principalmente através da multidisciplinaridade. Costuma repetir que o bom artista plástico é aquele que domina diversas áreas do conhecimento e estimula todos a estudarem fora do país para voltarem com domínio de uma – às vezes, pseudo – sabedoria que logo tentará impor.
Resta o rei. Este é o que aparece regularmente na imprensa, sendo constantemente homenageado. Seus movimentos são lentos e precisos. Geralmente, aprende com os erros das outras peças. Logo, quando age, está certo do sucesso. Não é um criador, mas explicita teoricamente uma série de movimentos que as outras peças realizam por intuição ou mesmo por instinto. Sua capacidade de teorizar, a partir da atuação prática dos outros, torna-o uma espécie de guia intelectual e de modelo para os membros de sua geração.
Sendo assim, cada profissional tem dentro de si as potencialidades dos peões (a humildade), das torres (a determinação), dos bispos (a liderança nos momentos decisivos), da dama (a competitividade) e do rei (a aprendizagem pelos erros alheios). Cabe a cada um utilizar essas características da maneira que achar mais conveniente.
Em última análise, a comparação entre os campos de atuação profissional e o jogo de xadrez também não deve ser levada ao pé da letra. É apenas um recurso didático para orientar estudantes e formados. Afinal, não podem ser esquecidas as sábias palavras de Flaubert, em O dicionário das idéias aceitas, sobre o xadrez: “Sério demais para jogo, fútil demais para ciência”.

Oscar D’Ambrosio, doutorando em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Mackenzie, é mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp. Integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA - Seção Brasil). Texto escrito para a Exposição e Simpósio ]ENTRE[ – Mostra de intercâmbio independente entre artistas da Unesp e da Unicamp, que ocorre de 5 a 8 de abril de 2011 na Galeria do Instituto de Artes da Unesp.

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